Caçando elefantes brancos no Rio de Janeiro
Chegamos com dificuldade à terra dos elefantes brancos. Essa terra é longe do centro, um satélite orbitando o planeta carioca. Saímos da Zona Sul, distraímos com as paisagens incríveis de Ipanema, Leblon, Gávea e São Conrado pela costa Atlântica do Rio de Janeiro. Dia de sol, lindo. Pegamos um engarrafamento infernal na ponte que laça a Barra de Tijuca ao mundo carioca.
Para chegar a essa terra plana com grandes lençóis de água o caçador intrépido pode escolher entre vários métodos de transporte. Pode chegar de barco, kitesurf, kayak, surfboard, jetski ou montando numa sereia. Nenhum desses jeitos funciona. Pode chegar de avião privado, helicóptero, balão de São João, free jump, etc. Se não tiver dinheiro, criatividade ou coragem para isso, pode também chegar de ônibus ou de carro. Alguns dizem que algum dia chegaremos de metrô.
O transporte terrestre é caracterizado por vias elevadas, túneis, afunilamentos, carregados de carros e ônibus privados. Todas as estradas parecem sofrer ate chorar com o menor acidente ou incomodidade. São nossos filhos mal educados. Se um acidente de três carros destrói uma tarde de trânsito, imaginem o efeito de três ônibus queimados e bem localizados. É fácil demais isolar a terra dos elefantes brancos.
Depois de uma meia hora, o trânsito ficou livre e fomos voando sobre os cinquenta metros de largura de Avenida das Américas a 90 km por hora, olhado a paisagem. Passamos em seguida por: um shopping gigantesco, lojas de autos, condomínios, árvores nas ilhas medianas bem gramadas, uma estátua da liberdade, lojas de autos, estrada boa sem buraco, Hard Rock Cafe, mais dois shoppings, condomínios, lojas de autos... repete. Os morros da maior floresta urbana no mundo nos encostavam com sua franca beleza. O mapa não identificou o país em que dirigíamos.
Tentando pular a linha amarela, vimos nosso primeiro elefante branco (inmovilus ambominavis). Tínhamos ouvido rumores que essa besta omnivora frequenta cada vez mais essa região. Ele é enorme, tem aspecto sonolento, ignorante, manifesta brutalidade e estupidez. Passamos depressa, evocando seu nome com tonalidade tronante – ci-da-de-da-mú-si-ca. Elefante mudo, mãos de cinco polegares rasgando o chão, tomando a paisagem.
Passamos por centenas de animais até então pouco conhecidos no mundo científico. Eles eram altos, projetando sombras gigantescas ao mar (residencialis miamenses). Alguns deles eram azuis, com milhares de olhos, outros eram rosa ou multicoloridos, mais baixinhos, quadrados, tontos. Cada um projetou suas raízes concretas na profundidade do subsolo, procurando água doce, estabilidade, senso. Eles têm a tendência de se reproduzir mnemonicamente sem cansar. Quando as pessoas passam perto deles, desaparecem e só saem embrulhadas em metal e plástico.
Viramos à direita na Avenida Salvador Allende e nos lembramos d 11.09.1973. Vimos gente esperando o ônibus que a cobra asfaltada engoliu. Passamos à beira da lagoa. Paisagem linda, pantanosa, úmida, frágil. Não havia mercado de frutas, nem casas particulares...mais um ponto do ônibus cheio. Ao lado equatorial da avenida estacionavam, estalavam, esgazeavam blocos de ninhos, alguns mais completos que os outros, esperando os pássaros migratórios chegar.
- Olha só!
- Onde?
- Lá ao lado da lagoa! O elefante branco! Cadê a câmera?
- Olhe que elefante moderno, elegante! Você acha que ele está tomando água da lagoa?
- Porra ‘tá sim, e muito! Você deveria ver o esgoto dele! Até que têm cheiro de dinheiro esbanjado.
- Você acha que ele é perigoso? Morde?
- Sim, morde, morde forte, mas têm jeito de acalmar.
- Qual é o segredo?
- Ele gosta de papéis pequenos e azuis, com um peixe num lado e um romano cego no outro. Ele gosta mais dos recém-tostados. Quando você lhe oferece três ou quatro, pode se aproximar por algumas horas.
Seguimos. Viramos á direita na Avenida Embaixador Abelardo Bueno. Logo depois, nos assustamos com a presença de um mamífero sem tamanho, sua pele cinzenta descuidada, os cabelos de seu nariz quarentão mal barbeados, pentelhos demais, unhas pintadas de grafite. Paramos. Ouvimos a grito particular dele. Sacamos as maquinas lentamente, ficamos quietos em meia sombra. A cada quatro minutos sai de seu intestino menor, se não me engano, o som de um piloto profissional (pilotus piloto) trocando marchas em alta velocidade.
Entramos em uma comunidade estabelecida por um grupo de pescadores sindicalizados há quarenta anos. A estrada não pavimentada obrigou o carro ir muito devagar, o que abriu a possibilidade de apreciarmos a tranqüilidade do lugar. Ao nosso lado árvores parcialmente ofuscavam a pele do elefante. Seu som nos perseguia. Seguindo a estrada, a vista do lago nos pegou intermitentemente pelas portas abertas das casas humildes. Paramos o carro debaixo de uma bouganville cheia de flores.
O Elias atendeu ao nosso toque da campainha com a abertura lateral da sua pesada porta de madeira. Os cachorros Mel e Preta lhe obedeceram sem discussão audível. O quintal da casa encheu o ar com fecundidade. Da porta de casa para trás, vimos o lago lambendo o terreno dele e de sua mulher baiana, Inalva.
A Inalva nos acolheu sentada no seu sofá, num estado doente, alerta e lutador. Na sua mesa estavam os livros Conflitos Ambientais no Rio de Janeiro e A luta por moradia e a política urbana no rio de Janeiro. Essa classe de livros é fundamental para quem pretende caçar elefantes na região.
Passamos horas lá, na sua casa construída por eles mesmos à beira da Lagoa de Jacarepaguá. Pelo menos eu não ficaria surpreso em ver um jacaré entrar pela água atrás da casa. Conversamos sobre os planos do governo de aumentar a alimentação do elefante desmatador com a idéia de treiná-lo para ser a grande atração num circo de cinco cones daqui a seis anos. Quando sedentos de tanto falar, o Elias trouxe água de coco gelado. Também café. Também almoço: polvo com arroz, salada com hortaliças do quintal, licor de banana. Qualidade de vida altíssima, tranqüila, quase soporífica. O elefante gritou de novo, o piloto voava sobre o melhor pavimento do país a trinta metros de distância e a trezentos kilômetros por hora.
“Viver aqui é uma escolha ideológica,” pontuou Inalva, em seguida, continuar: “Os treinadores dos elefantes querem os lugares mais bonitos da cidade para eles comerem e crescerem. Seus elefantes são guardam o patromônio. Não sobra nada para as pessoas em seu entorno.”
Inalva continuou, “O Eduardo Paes [prefeito do Rio] lançou sua carreira politica com o discurso de ‘limpeza social’ tentando nos tirar daqui ‘93. Hoje nos chamam ilegais, sujos, poluição visual, clamam que nos maculamos o meio-ambiente. Eles empregam qualquer forma de violência para nos tirar de nossas casas e construir lugares de consumo que danificariam muito mais o lugar em todos os sentidos.”
Com carinho e angústia, agradecemos aos nossos anfitriões e voltamos pela estrada, sabendo que a luta contra os elefantes será dura, cansativa e com resultado previsto. Eles estão chegando de longe, em marcha inexorável, nem pensando em se adotar a cultura local. Antes que o circo chegue, os donos do poder farão tudo que for preciso para o bom desempenho dos elefantes: dar-lhe-ão terreno, comida e treinamento. Para isso precisarão reformar o território e o uso de solo de cima para baixo, para tirar dos de baixo por cima, aplicando o choque, calando bocas, evitando discussão.
De volta à terra carioca, encontramos mais um elefante. Dessa vez, vimos um elefante mal formado, mal alimentado, de proporções estranhas, desabitado, fechado, cabisbaixo. Ele ficava na sua gaiola, esperando alguém lhe explicar teorias existenciais. Absorto em seus pensamentos inúteis, lhe deixamos lá, rodeado por estradas boas, condomínios autoritários, shoppings, e outros tipos de animais cada vez mais presentes naquela região.