Entrevista - 27/04/2011 16:46
‘Não-legado’ dos megaeventos
Por Marianna Araujo
‘Não-legado’ dos megaeventos
Por Marianna Araujo
“O torcedor não costuma pensar que ir ao estádio é um ato político, mas é”. A frase é do geógrafo e professor da Universidade Federal Fluminense (UFF), Christopher Gaffney, que também é membro da Associação Nacional dos Torcedores (ANT), entidade dedicada ao enfrentamento da exclusão do povo brasileiro dos estádios de futebol, do desrespeito à cultura torcedora e da retirada de comunidades de trabalhadores em nome da Copa do Mundo e das Olimpíadas.
Para Gaffney, todas as etapas da realização dos megaeventos esportivos de 2016 e 2014 envolvem o estabelecimento de novas regras e novas formas de governar com vistas a gerar um estado de exceção onde o autoritarismo vigora cada vez mais livre de constrangimentos. Segundo o geógrafo, estas são mudanças jurídicas seguidas por mudanças sócio-espaciais que contam com a anuência da grande mídia. Confira.
Observatório de Favelas: Você fala em "democratizar a Copa do Mundo de 2014". O que essa expressão quer dizer?
Chris Gaffney: Ninguém vota por uma Copa acontecer. Não há referendo, não há plebiscito, não existe opinião pública a respeito. Se o governador do estado, o prefeito, o Ministério do Esporte, o Presidente da República, o Ricardo Teixeira, o seu Sepp Blatter tivessem perguntado para o cidadão, podemos fechar o Maracanã por quatro ou cinco anos, descaracterizá-lo, e gastar 1,5 bilhão para receber cinco jogos de futebol em 2014, e privatizar os lucros, o que teríamos dito?
Depois de falar em 2007 que o governo federal não bancará a Copa, agora estamos dispostos gastar de sete bilhões de dinheiro público em doze estádios, em doze cidades, sem perguntar a ninguém, sem passar pelas instituições democráticas. Que órgão do governo decidiu colocar um estádio em Natal e não em Goiás, em Manaus e não em Belém? Ninguém toma responsabilidade. Quem da CBF, do Ministério do Esporte, da Prefeitura perguntou ao usuário, ao torcedor – que tipo de estádio vocês querem, demandam, precisam? Por que não podemos seguir um modelo que inclui mais a sociedade civil nesse processo? Há uma falta de informação, uma falta de transparência, uma falta de coordenação e planejamento, uma falta de inclusão social, grandes falhas de gestão e um desrespeito total pelo senso comum.
O caminho que estamos seguindo é longe de ser o único. Dentro de todas as possibilidades, estamos no caminho menos democrático, o menos responsável, o mais autocrático com menos mecanismos de controle. O modelo atual é que menos atende as demandas da sociedade e mais atende as demandas de uma empresa Suíça. Pior, “eles” estão destruindo lugares comuns, palcos públicos e espaços sagrados de memória coletiva para reformulá-los em shoppings.
Ao lado do Lixômetro e do Legadômetro precisamos um Democráticômetro. Nota Negativa.
OF: Qual o papel da imprensa nesse processo que você descreveu?
CG: A imprensa adora esporte porque ele é barato e rentável. Em comparação ao custo de produção de uma telenovela, o futebol é baratíssimo. O estado paga pela construção e manutenção do palco, os times geram o elenco, e todo mundo conhece a história e a segue semanalmente. Não servem aos interesses da imprensa, atrair atenção para os problemas no esporte.
Porém, a narrativa global do esporte é impactante, informa nossas próprias identidades, nossas histórias pessoais. Quem viu uma final da Copa ao vivo? Quase ninguém, mas todo mundo assiste. É dizer, nossa experiência da Copa é (e será) formada pela mídia, então o papel dela é fundamental nesse processo.
Esporte é rentável porque ele é despolitizado. O torcedor não costuma pensar que ir ao estádio é um ato político, mas é. Construir, reformar, demolir, manejar e transformar estádios também são atos políticos. Quando o projeto do Maracanã foi apresentado, não houve questionamento do projeto, só bênçãos. Mas é muito óbvio que, o Novo Maracanã descaracterizará o estádio que conhecíamos. Como ninguém reclamou? O Velho Maracanã foi construído para ser palco do que representaria, arquitetonicamente, o projeto de democracia brasileira de outra época. Esse Novo Maracanã está sendo construído para atender discursos e valores diferentes. Será que concordamos com esses valores? Os valores de democracia e inclusão social, refletidos na arquitetura do estádio, não são mais os valores que norteiam a sociedade brasileira? Pelo o que eu saiba, só Juca Kfouri e José Cruz levantaram críticas desde o início.
Lamentavelmente, a trajetória é sempre essa. A mídia, com os times, os ministérios, os entes privados como a CBF e os “boosters” (negócios, setor privado, coalizão de crescimento, os desenvolvimentistas) combinam com políticos para vender a idéia de que “precisamos” de um estádio novo, um megaevento, uma reforma urbana, um espetáculo global. Vamos custar a saber, mas, mais vai trazer benefícios no curto, meio e longo prazo. As vozes harmonizadas e ufanas transmitem que tudo vai dar certo e quem levanta a mão contra é tratado como antipatriótico, anti-esporte, anti-progresso, anti-tudo. As vozes dissonantes não recebem espaço na imprensa, a princípio. O megaevento representa uma “oportunidade imperdível” tanto pelos políticos e empreiteiros quanto pela mídia e, nos dizem, pela sociedade. A imprensa atua como o alto-falante, o carro de som desses discursos. Mas a imprensa não inventa tudo sozinha. Não pode pensar na imprensa como um ente independente do poder público ou os grandes interesses de capital que dirigem todo esse processo.
Então vemos desde o início, uma repetição continua dos discursos dominantes. Depois que as promessas se dissolvem e os projetos ficam superfaturados, quando as despesas e desapropriações feitas em nome do megaevento são cada vez mais chocantes, é quando a imprensa é obrigada a ligar o olhar crítico, publicar algumas denúncias. O que estamos vendo hoje é uma onda crescente de artigos que criticam as preparações para Copa e Olimpíadas. O problema é que agora é tarde demais. Precisamos de uma imprensa crítica do começo ao fim e não só quando as preparações começam a apodrecer.
Para Gaffney, todas as etapas da realização dos megaeventos esportivos de 2016 e 2014 envolvem o estabelecimento de novas regras e novas formas de governar com vistas a gerar um estado de exceção onde o autoritarismo vigora cada vez mais livre de constrangimentos. Segundo o geógrafo, estas são mudanças jurídicas seguidas por mudanças sócio-espaciais que contam com a anuência da grande mídia. Confira.
Observatório de Favelas: Você fala em "democratizar a Copa do Mundo de 2014". O que essa expressão quer dizer?
Chris Gaffney: Ninguém vota por uma Copa acontecer. Não há referendo, não há plebiscito, não existe opinião pública a respeito. Se o governador do estado, o prefeito, o Ministério do Esporte, o Presidente da República, o Ricardo Teixeira, o seu Sepp Blatter tivessem perguntado para o cidadão, podemos fechar o Maracanã por quatro ou cinco anos, descaracterizá-lo, e gastar 1,5 bilhão para receber cinco jogos de futebol em 2014, e privatizar os lucros, o que teríamos dito?
Depois de falar em 2007 que o governo federal não bancará a Copa, agora estamos dispostos gastar de sete bilhões de dinheiro público em doze estádios, em doze cidades, sem perguntar a ninguém, sem passar pelas instituições democráticas. Que órgão do governo decidiu colocar um estádio em Natal e não em Goiás, em Manaus e não em Belém? Ninguém toma responsabilidade. Quem da CBF, do Ministério do Esporte, da Prefeitura perguntou ao usuário, ao torcedor – que tipo de estádio vocês querem, demandam, precisam? Por que não podemos seguir um modelo que inclui mais a sociedade civil nesse processo? Há uma falta de informação, uma falta de transparência, uma falta de coordenação e planejamento, uma falta de inclusão social, grandes falhas de gestão e um desrespeito total pelo senso comum.
O caminho que estamos seguindo é longe de ser o único. Dentro de todas as possibilidades, estamos no caminho menos democrático, o menos responsável, o mais autocrático com menos mecanismos de controle. O modelo atual é que menos atende as demandas da sociedade e mais atende as demandas de uma empresa Suíça. Pior, “eles” estão destruindo lugares comuns, palcos públicos e espaços sagrados de memória coletiva para reformulá-los em shoppings.
Ao lado do Lixômetro e do Legadômetro precisamos um Democráticômetro. Nota Negativa.
OF: Qual o papel da imprensa nesse processo que você descreveu?
CG: A imprensa adora esporte porque ele é barato e rentável. Em comparação ao custo de produção de uma telenovela, o futebol é baratíssimo. O estado paga pela construção e manutenção do palco, os times geram o elenco, e todo mundo conhece a história e a segue semanalmente. Não servem aos interesses da imprensa, atrair atenção para os problemas no esporte.
Porém, a narrativa global do esporte é impactante, informa nossas próprias identidades, nossas histórias pessoais. Quem viu uma final da Copa ao vivo? Quase ninguém, mas todo mundo assiste. É dizer, nossa experiência da Copa é (e será) formada pela mídia, então o papel dela é fundamental nesse processo.
Esporte é rentável porque ele é despolitizado. O torcedor não costuma pensar que ir ao estádio é um ato político, mas é. Construir, reformar, demolir, manejar e transformar estádios também são atos políticos. Quando o projeto do Maracanã foi apresentado, não houve questionamento do projeto, só bênçãos. Mas é muito óbvio que, o Novo Maracanã descaracterizará o estádio que conhecíamos. Como ninguém reclamou? O Velho Maracanã foi construído para ser palco do que representaria, arquitetonicamente, o projeto de democracia brasileira de outra época. Esse Novo Maracanã está sendo construído para atender discursos e valores diferentes. Será que concordamos com esses valores? Os valores de democracia e inclusão social, refletidos na arquitetura do estádio, não são mais os valores que norteiam a sociedade brasileira? Pelo o que eu saiba, só Juca Kfouri e José Cruz levantaram críticas desde o início.
Lamentavelmente, a trajetória é sempre essa. A mídia, com os times, os ministérios, os entes privados como a CBF e os “boosters” (negócios, setor privado, coalizão de crescimento, os desenvolvimentistas) combinam com políticos para vender a idéia de que “precisamos” de um estádio novo, um megaevento, uma reforma urbana, um espetáculo global. Vamos custar a saber, mas, mais vai trazer benefícios no curto, meio e longo prazo. As vozes harmonizadas e ufanas transmitem que tudo vai dar certo e quem levanta a mão contra é tratado como antipatriótico, anti-esporte, anti-progresso, anti-tudo. As vozes dissonantes não recebem espaço na imprensa, a princípio. O megaevento representa uma “oportunidade imperdível” tanto pelos políticos e empreiteiros quanto pela mídia e, nos dizem, pela sociedade. A imprensa atua como o alto-falante, o carro de som desses discursos. Mas a imprensa não inventa tudo sozinha. Não pode pensar na imprensa como um ente independente do poder público ou os grandes interesses de capital que dirigem todo esse processo.
Então vemos desde o início, uma repetição continua dos discursos dominantes. Depois que as promessas se dissolvem e os projetos ficam superfaturados, quando as despesas e desapropriações feitas em nome do megaevento são cada vez mais chocantes, é quando a imprensa é obrigada a ligar o olhar crítico, publicar algumas denúncias. O que estamos vendo hoje é uma onda crescente de artigos que criticam as preparações para Copa e Olimpíadas. O problema é que agora é tarde demais. Precisamos de uma imprensa crítica do começo ao fim e não só quando as preparações começam a apodrecer.
“O torcedor não costuma pensar que ir ao estádio é um ato político, mas é”
OF: A preparação do Rio para a Copa de 2014 e as Olimpíadas de 2016 envolve a implantação de uma série de grandes projetos para a cidade. A construção da Transcarioca - via que ligará a Barra da Tijuca ao Aeroporto Internacional Tom Jobim - já desapropriou cerca de 700 residências de 3 mil previstas. Recentemente, houve denúncias dando conta de que as famílias desalojadas estão recebendo indenizações muito abaixo do valor de seus imóveis. Essas denúncias saíram nos grandes veículos de comunicação. O senhor afirma, de outro lado, que, durante a execução dos grandes projetos urbanísticos dos mega-eventos, se estabelece uma espécie de alinhamento entre o discurso da imprensa e a vontade estatal. O fato das denúncias dos moradores saírem nos grandes veículos seria uma espécie de contradição? Como avalia isso?
CG: A grande mídia não tem mais como ignorar essas desapropriações. Não pode aparecer tão comprometido com um projeto que não critica nada. Mas, não é simplesmente uma questão de publicar denuncias dos moradores. A maneira em que eles apresentam essas denúncias é importante. Por exemplo, outro dia houve uma notinha na segunda página do Globo, chamando o MST de terroristas por que não “respeitam a autoridade do estado”. Tudo bem que eles apresentam notícias sobre o MST, mas são tantos exemplos de um viés que favorece o estado e o status quo, que não dá para acreditar no que está escrito.
Tomo por exemplo o Maracanã. Saiu no Globo a semana passada um artigo intitulado - “O Maracanã não é mais nosso”. A meu ver, quando O Globo começa criticar o projeto da Copa a situação realmente é ruim. O Maracanã não existe mais. O Engenhão não é legal para ver futebol, tudo mal feito. A cidade perdeu seu grande palco por cinco anos e, somando as reformas dos últimos dez anos, vai custar quase dois bilhões. Eliminar o Maracanã sempre foi o Plano A. Por que reclamar agora? É chorar sobre leite derramado. Eu levantei essas perguntas pela primeira vez em 2008, porque era bastante previsível o que ia acontecer com o Maracanã. De fato, tinha acontecido com as reformas do PAN, mas ninguém prestou atenção porque o estádio continuava funcionando direitinho.
Então a contradição não é que nossa mídia hegemônica lance reportagens sobre desapropriações, ou que de vez em quando articula os interesses de sociedade civil. A contradição está no fato que O Globo está dando todo apoio ao projeto (de BRT, por exemplo), ao mesmo tempo em que está mostrando o lado feio aos poucos. A notícia de que um condomínio de classe média vai ser desapropriado pelas obras da Trans-Olímpica, recebeu uma página inteira de cobertura. A remoção forçada de 119 favelas quase nada. É uma questão de prioridades, influência, poder simbólico e repercussão político.
OF: No caso específico dos mega-eventos, por que a imprensa costuma reforçar os discursos desenvolvimentistas que justificam ações ilegais do Estado contra milhares de famílias?
CG: Não vejo muita diferença entre a imprensa, o governo e seus banqueiros nesse sentido. A imprensa publica o que diz os governadores e não se preocupa muito com as críticas. Acho que há uma falta de entendimento, entre os editores das grandes órgãos da imprensa, sobre como realmente funciona um megaevento. Ou existe uma ignorância intencional, ou uma miopia que acontece na frente das possibilidades “inéditas, imperdíveis” do megaevento. A gente só quer ouvir coisas boas, que tudo vai melhorar, a economia vai crescer para sempre. Ninguém quer admitir os custos reais, quanto o estádio vai custar, quantas pessoas serão aterrorizadas, ameaçadas, removidas, desalojadas. O ufanismo generalizado deixa todo mundo só querendo saber que o estádio vai estar pronto, o aeroporto melhorado, um novo sistema de transporte instalado. Uma caixa preta também é uma caixa de Pandora. Uma vez que, o megaevento é questionado em si, tem que começar pensar, agir, cobrar.
Também temos que pensar nesse projeto da Copa e Olimpíada como uma oportunidade de lucro espetacular. Esse também vai enriquecer a imprensa. Para mim, tudo que está acontecendo no Rio de Janeiro tem a ver com especulação imobiliária, com o destrancamento de valor, com a oportunidade de ganhar muito dinheiro no prazo mais curto possível. Para isso acontecer, precisamos reestruturar os espaços da cidade, reorganizar as relações sociais, aplicar uma série de “choques”, como diz Naomi Klein. Os megaeventos funcionam como uma invasão. Entre o delírio e o temor, é preciso estabelecer novas regras, inventar novas formas de governar, gerar um estado de exceção para instalar um regime autoritário. Já aconteceram essas mudanças jurídicas, agora vêm as mudanças sócio-espaciais.
OF: Os Jogos Pan-americanos de 2007 não deixaram a infra-estrutura de transporte prometida, não melhoraram as habitações populares e não repararam os danos ambientais das grandes obras. O Rio dá sinais de reestruturação no transporte. Mas, será que em outras áreas é possível que a história do (não) legado social do PAN se repita?
CG: Essa reestruturação de transporte também tem que ser avaliada. Para mim, não há evidencia que os sistemas de BRT vão atender ás demandas atuais do transporte na região Metropolitana. Para mim, só vamos ter legado negativo no transporte urbano. Quem planejou essas linhas? Por que temos três, das quatro linhas, indo a Barra da Tijuca? Por que não vamos ter uma ligação entre Galeão e Santos Dumont? Como estamos organizando o serviço de barca entre Rio e Niterói? Não vamos ligar a Zona Oeste com o Centro, a Baixada com alguma zona? É claro que, o sistema de transporte planejado só vai atender as pessoas que vão para Barra de Tijuca. Por quê? Qual será o efeito disso daqui a 10, 20, 50 anos? Os custos de oportunidade desses sistemas não têm tamanho. Qualquer intervenção urbana vai ter um efeito (ou legado) social. Uma linha de BRT é uma faixa impermeável de concreto e alta velocidade que corta em dois por onde passe. Alguém reparou na fragmentação que vai acontecer em Jacarepaguá com essas linhas?
É preciso entender o que queremos dizer com “legado social”. Para mim, significa melhoramentos em educação, saúde, meio-ambiente, moradia, trabalho, transporte e qualidade da vida para a maioria da população (dentro do parâmetro do capitalismo selvagem reinante). Talvez, o benefício de um incremento do orgulho de ser “global”, de ter experiências “legais” com os eventos são importantes, mas para mim não caem dentro dos parâmetros de legado social.
Com esse critério, o legado do PAN não era só negativa, mas um fracasso total. Esse também tem que ser entendido com legado. Pode chamar de “illegado”. Até a Prefeitura aceita que não houve legado urbano ou social nenhum do PAN além de possibilitar a conquista da Copa e Olimpíada. Seguindo essa lógica, a má gestão do PAN abriu o caminho para sediar eventos maiores com mais dinheiro. Se fosse uma empresa ou empregada teriam sido demitido por incompetência, mas o que fizemos foi dar as mesmas pessoas mais umas chances com mais dinheiro e menos controle.
OF: O esporte certamente é uma atividade que tem papel central no desenvolvimento de diferentes capacidades. No entanto, é possível que as características positivas do discurso do desporto sejam utilizadas, no caso dos mega-eventos, como cortina de fumaça para outros interesses?
CG: Um megaevento é um grande cavalo-de-tróia, escondendo os mais diversos instrumentos de neoliberalismo. Como os discursos esportivos são despolitizados e o esporte tem fortes ligações com nossas emoções, é difícil ter uma conversa sincera ao seu respeito. Os que acreditam no “projeto Olímpico” parecem autômatos, sempre repetindo as mesmas coisas como se fossem mantras Olímpicos. “Barcelona deu certo, se transformou, melhorou muita coisa, vamos seguir esse modelo, vai dar certo de novo.” Repete. Nada a ver.
CG: A grande mídia não tem mais como ignorar essas desapropriações. Não pode aparecer tão comprometido com um projeto que não critica nada. Mas, não é simplesmente uma questão de publicar denuncias dos moradores. A maneira em que eles apresentam essas denúncias é importante. Por exemplo, outro dia houve uma notinha na segunda página do Globo, chamando o MST de terroristas por que não “respeitam a autoridade do estado”. Tudo bem que eles apresentam notícias sobre o MST, mas são tantos exemplos de um viés que favorece o estado e o status quo, que não dá para acreditar no que está escrito.
Tomo por exemplo o Maracanã. Saiu no Globo a semana passada um artigo intitulado - “O Maracanã não é mais nosso”. A meu ver, quando O Globo começa criticar o projeto da Copa a situação realmente é ruim. O Maracanã não existe mais. O Engenhão não é legal para ver futebol, tudo mal feito. A cidade perdeu seu grande palco por cinco anos e, somando as reformas dos últimos dez anos, vai custar quase dois bilhões. Eliminar o Maracanã sempre foi o Plano A. Por que reclamar agora? É chorar sobre leite derramado. Eu levantei essas perguntas pela primeira vez em 2008, porque era bastante previsível o que ia acontecer com o Maracanã. De fato, tinha acontecido com as reformas do PAN, mas ninguém prestou atenção porque o estádio continuava funcionando direitinho.
Então a contradição não é que nossa mídia hegemônica lance reportagens sobre desapropriações, ou que de vez em quando articula os interesses de sociedade civil. A contradição está no fato que O Globo está dando todo apoio ao projeto (de BRT, por exemplo), ao mesmo tempo em que está mostrando o lado feio aos poucos. A notícia de que um condomínio de classe média vai ser desapropriado pelas obras da Trans-Olímpica, recebeu uma página inteira de cobertura. A remoção forçada de 119 favelas quase nada. É uma questão de prioridades, influência, poder simbólico e repercussão político.
OF: No caso específico dos mega-eventos, por que a imprensa costuma reforçar os discursos desenvolvimentistas que justificam ações ilegais do Estado contra milhares de famílias?
CG: Não vejo muita diferença entre a imprensa, o governo e seus banqueiros nesse sentido. A imprensa publica o que diz os governadores e não se preocupa muito com as críticas. Acho que há uma falta de entendimento, entre os editores das grandes órgãos da imprensa, sobre como realmente funciona um megaevento. Ou existe uma ignorância intencional, ou uma miopia que acontece na frente das possibilidades “inéditas, imperdíveis” do megaevento. A gente só quer ouvir coisas boas, que tudo vai melhorar, a economia vai crescer para sempre. Ninguém quer admitir os custos reais, quanto o estádio vai custar, quantas pessoas serão aterrorizadas, ameaçadas, removidas, desalojadas. O ufanismo generalizado deixa todo mundo só querendo saber que o estádio vai estar pronto, o aeroporto melhorado, um novo sistema de transporte instalado. Uma caixa preta também é uma caixa de Pandora. Uma vez que, o megaevento é questionado em si, tem que começar pensar, agir, cobrar.
Também temos que pensar nesse projeto da Copa e Olimpíada como uma oportunidade de lucro espetacular. Esse também vai enriquecer a imprensa. Para mim, tudo que está acontecendo no Rio de Janeiro tem a ver com especulação imobiliária, com o destrancamento de valor, com a oportunidade de ganhar muito dinheiro no prazo mais curto possível. Para isso acontecer, precisamos reestruturar os espaços da cidade, reorganizar as relações sociais, aplicar uma série de “choques”, como diz Naomi Klein. Os megaeventos funcionam como uma invasão. Entre o delírio e o temor, é preciso estabelecer novas regras, inventar novas formas de governar, gerar um estado de exceção para instalar um regime autoritário. Já aconteceram essas mudanças jurídicas, agora vêm as mudanças sócio-espaciais.
OF: Os Jogos Pan-americanos de 2007 não deixaram a infra-estrutura de transporte prometida, não melhoraram as habitações populares e não repararam os danos ambientais das grandes obras. O Rio dá sinais de reestruturação no transporte. Mas, será que em outras áreas é possível que a história do (não) legado social do PAN se repita?
CG: Essa reestruturação de transporte também tem que ser avaliada. Para mim, não há evidencia que os sistemas de BRT vão atender ás demandas atuais do transporte na região Metropolitana. Para mim, só vamos ter legado negativo no transporte urbano. Quem planejou essas linhas? Por que temos três, das quatro linhas, indo a Barra da Tijuca? Por que não vamos ter uma ligação entre Galeão e Santos Dumont? Como estamos organizando o serviço de barca entre Rio e Niterói? Não vamos ligar a Zona Oeste com o Centro, a Baixada com alguma zona? É claro que, o sistema de transporte planejado só vai atender as pessoas que vão para Barra de Tijuca. Por quê? Qual será o efeito disso daqui a 10, 20, 50 anos? Os custos de oportunidade desses sistemas não têm tamanho. Qualquer intervenção urbana vai ter um efeito (ou legado) social. Uma linha de BRT é uma faixa impermeável de concreto e alta velocidade que corta em dois por onde passe. Alguém reparou na fragmentação que vai acontecer em Jacarepaguá com essas linhas?
É preciso entender o que queremos dizer com “legado social”. Para mim, significa melhoramentos em educação, saúde, meio-ambiente, moradia, trabalho, transporte e qualidade da vida para a maioria da população (dentro do parâmetro do capitalismo selvagem reinante). Talvez, o benefício de um incremento do orgulho de ser “global”, de ter experiências “legais” com os eventos são importantes, mas para mim não caem dentro dos parâmetros de legado social.
Com esse critério, o legado do PAN não era só negativa, mas um fracasso total. Esse também tem que ser entendido com legado. Pode chamar de “illegado”. Até a Prefeitura aceita que não houve legado urbano ou social nenhum do PAN além de possibilitar a conquista da Copa e Olimpíada. Seguindo essa lógica, a má gestão do PAN abriu o caminho para sediar eventos maiores com mais dinheiro. Se fosse uma empresa ou empregada teriam sido demitido por incompetência, mas o que fizemos foi dar as mesmas pessoas mais umas chances com mais dinheiro e menos controle.
OF: O esporte certamente é uma atividade que tem papel central no desenvolvimento de diferentes capacidades. No entanto, é possível que as características positivas do discurso do desporto sejam utilizadas, no caso dos mega-eventos, como cortina de fumaça para outros interesses?
CG: Um megaevento é um grande cavalo-de-tróia, escondendo os mais diversos instrumentos de neoliberalismo. Como os discursos esportivos são despolitizados e o esporte tem fortes ligações com nossas emoções, é difícil ter uma conversa sincera ao seu respeito. Os que acreditam no “projeto Olímpico” parecem autômatos, sempre repetindo as mesmas coisas como se fossem mantras Olímpicos. “Barcelona deu certo, se transformou, melhorou muita coisa, vamos seguir esse modelo, vai dar certo de novo.” Repete. Nada a ver.
Em 1992, Barcelona tinha um milhão de habitantes, o Rio tem 13 milhões. Espanha recebe 55 milhões de visitas turísticas por ano, o Brasil cinco, seis. Barcelona tinha um plano-diretor antes das Olimpíadas chegarem, o Rio não. O plano-diretor da cidade é a Olimpíada. Não pode dar certo. (http://www.ub.edu/geocrit/b3w-895/b3w-895-17.htm)
Então a cortina de fumaça esconde esse cavalo-de-tróia que também é uma caixa preta. Pode ser que a imprensa tenha as chaves, mas está tão comprometida com o sonho olímpico que virou um cego papagaio. Os discursos “positivos” do esporte são barreiras difíceis de derrubar, desconstruir. Politizar esporte deve ser prioritário, mas estamos longe, longe disso. Pior, cada vez que falamos nas “demandas” dos megaeventos (sejam de tempo, infraestrutura, ou isenção fiscal) fortalecemos os discursos dominantes. Todas as perguntas continuam circulando em volta do megaevento, atraindo tudo para a caixa-preta como se fosse um buraco negro. Precisamos entender os eventos como projetos políticos, que funcionam para instalar novas formas de governar, uma nova biopolítica, onde quem tem dinheiro pode comprar seus direitos de cidadão. Eis o modelo atual de desenvolvimento.
OF: Como você avalia a cobertura esportiva dos veículos de imprensa brasileiros? Do que sente falta?
CG: O papel de ESPN me parece bastante interessante. Eles são diferentes ao ESPN nos EUA, mais críticos, mais sábios, mais mente aberta. Em geral, eu sinto falto de um nível de cinismo, que leva a gente a questionar o status quo. Acho que ficamos presos naquele debate inútil sobre futebol-arte ou futebol de resultados, que gera uma falsa nostalgia sobre como o futebol era.
Talvez sempre fosse ruim, mais não tanto como agora e por isso ficamos num passado imaginário que nos distrai de nosso presente urgente. Não ouço a voz do torcedor em nenhum lugar na imprensa esportiva, além daqueles fragmentos na televisão, mandando questões simples para um comentarista qualquer. Sinto muita falta de uma imprensa esportiva independente, que nos desafia pensar em uma maneira mais crítica, redonda, e inteligente.
OF: Qual a sua formação? Em que universidade atua e que pesquisa vem desenvolvendo?
CG: Me formei em história e filosofia e sou doutor em geografia. Estou atuando na Escola de Arquitetura e Urbanismo, da Universidade Federal Fluminense com o grupo Grandes Projetos Urbanos. Tenho várias pesquisas em andamento. Estou pesquisando os processos de planejamento e instalação das linhas BRT. Essas linhas vão ter um efeito profundo no tecido urbano e social do Rio para sempre.
Também estou investigando a história da transformação do Maracanã, começando com a primeira grande reforma em 1999. Também faço parte de uma pesquisa nacional da IPPUR/UFRJ sobre os 12 projetos da Copa, nas 12 cidades-sedes. Esses projetos representam uma continuação de minhas investigações sobre o papel social dos estádios de futebol na história do Rio de Janeiro e de Buenos Aires, que saiu no livro Temples of the Earthbound Gods (University of Texas Press, 2008). Estou no processo de traduzir esse livro para o Português com a Editora 7 Letras.
Também sou bastante envolvido com a Associação Nacional dos Torcedores, ocupando a carga de vice-presidente nacional. Eu estou publicando denuncias e interpretando notícias no meu site www.geostadia.com em inglês, para atrair atenção aos processos, desafios, e realidades dos megaeventos no Rio de Janeiro e Brasil.
Então a cortina de fumaça esconde esse cavalo-de-tróia que também é uma caixa preta. Pode ser que a imprensa tenha as chaves, mas está tão comprometida com o sonho olímpico que virou um cego papagaio. Os discursos “positivos” do esporte são barreiras difíceis de derrubar, desconstruir. Politizar esporte deve ser prioritário, mas estamos longe, longe disso. Pior, cada vez que falamos nas “demandas” dos megaeventos (sejam de tempo, infraestrutura, ou isenção fiscal) fortalecemos os discursos dominantes. Todas as perguntas continuam circulando em volta do megaevento, atraindo tudo para a caixa-preta como se fosse um buraco negro. Precisamos entender os eventos como projetos políticos, que funcionam para instalar novas formas de governar, uma nova biopolítica, onde quem tem dinheiro pode comprar seus direitos de cidadão. Eis o modelo atual de desenvolvimento.
OF: Como você avalia a cobertura esportiva dos veículos de imprensa brasileiros? Do que sente falta?
CG: O papel de ESPN me parece bastante interessante. Eles são diferentes ao ESPN nos EUA, mais críticos, mais sábios, mais mente aberta. Em geral, eu sinto falto de um nível de cinismo, que leva a gente a questionar o status quo. Acho que ficamos presos naquele debate inútil sobre futebol-arte ou futebol de resultados, que gera uma falsa nostalgia sobre como o futebol era.
Talvez sempre fosse ruim, mais não tanto como agora e por isso ficamos num passado imaginário que nos distrai de nosso presente urgente. Não ouço a voz do torcedor em nenhum lugar na imprensa esportiva, além daqueles fragmentos na televisão, mandando questões simples para um comentarista qualquer. Sinto muita falta de uma imprensa esportiva independente, que nos desafia pensar em uma maneira mais crítica, redonda, e inteligente.
OF: Qual a sua formação? Em que universidade atua e que pesquisa vem desenvolvendo?
CG: Me formei em história e filosofia e sou doutor em geografia. Estou atuando na Escola de Arquitetura e Urbanismo, da Universidade Federal Fluminense com o grupo Grandes Projetos Urbanos. Tenho várias pesquisas em andamento. Estou pesquisando os processos de planejamento e instalação das linhas BRT. Essas linhas vão ter um efeito profundo no tecido urbano e social do Rio para sempre.
Também estou investigando a história da transformação do Maracanã, começando com a primeira grande reforma em 1999. Também faço parte de uma pesquisa nacional da IPPUR/UFRJ sobre os 12 projetos da Copa, nas 12 cidades-sedes. Esses projetos representam uma continuação de minhas investigações sobre o papel social dos estádios de futebol na história do Rio de Janeiro e de Buenos Aires, que saiu no livro Temples of the Earthbound Gods (University of Texas Press, 2008). Estou no processo de traduzir esse livro para o Português com a Editora 7 Letras.
Também sou bastante envolvido com a Associação Nacional dos Torcedores, ocupando a carga de vice-presidente nacional. Eu estou publicando denuncias e interpretando notícias no meu site www.geostadia.com em inglês, para atrair atenção aos processos, desafios, e realidades dos megaeventos no Rio de Janeiro e Brasil.